NALDOVELHO

POESIA É ATO DE CORAGEM

Textos

DA JANELA DO MEU QUARTO
NALDOVELHO

Da janela do meu quarto eu vejo muitas coisas. Vejo na madrugada o sol surgindo a descortinar um novo dia, às vezes mal humorado, por conta de um verão que arde feito um forno danado de quente e que sem mais nem menos cozinha a paciência da gente; outras bem humorado, manhãs tão belas, de primavera, outono ou inverno, suaves e tão plenas de luz. Manhãs de chuva não, nem de tempo, apenas, nublado, pois costumo dormir até tarde abraçado às minhas cobertas, embriagado pelo cheiro que a terra molhada exala, e por conta da preguiça nada vejo.

Da janela do meu quarto eu vejo as pessoas em busca de suas vidas, a semear com o suor dos seus corpos, a colher seus frutos passados, aprendendo com o certo e o errado, tentando construir um amanhã. Vejo o chefe de família, cansado, mal dormido, semblante um tanto preocupado, pelos compromissos da vida, quantas dívidas não pagas, tempos difíceis de se viver... Tem sempre alguém querendo cobrar!

Vejo o homem bem humorado, por conta do sucesso, satisfeito por ter realizado algum plano de vida; vejo um casal de jovens, enamorados, quantos sonhos a serem concretizados, numa mistura de paixão e esperança... Espero que a vida se mostre generosa, poupando-os dos desencontros e fracassos, tão comuns nestes nossos dias. Tomara Deus que o encanto, nunca se permita à amargura e mesmo que haja a partida que esta deixe poucas feridas. A vida ensina como cicatrizar os cortes.

Da janela do meu quarto vejo um casal, já descasado, divergindo sobre o quanto, em litígio sobre as posses. Quanto ódio em seus olhos e as crianças tão precoces, objetos de partilha, quanta mágoa em seus semblantes, não conseguem entender.

Vejo também e ainda bem, o casal bem resolvido, de muitos anos vividos em perfeita comunhão, cabelos brancos, já idosos, num sereno aconchego, próprio daqueles que souberam conciliar, que souberam compreender que o desgaste foi feito apenas para nos lapidar.

Da janela do meu quarto eu vejo muitas coisas: o ambulante, o traficante, o mendigo, o desempregado, o viciado, o pivete, a prostituta, o bêbado, o louco varrido; toda uma legião de excluídos, tentando sobreviver por conta de um drama que nós mesmos ajudamos a escrever. Vejo a cada instante um assalto, um grito, muitos tiros, o conflito; vejo a favela e as nossas mazelas, nossas fraquezas, delitos... Tantas coisas deveríamos ter feito e a forte impressão de que não há nada a se fazer. É como se fosse um filme... Acho que já é hora de entendermos, filmaram a vida da gente e não deu nem para perceber.

Da janela do meu quarto eu vejo a tarde chegando, brisa suave e tranqüila a arejar nossas mentes, e as pessoas continuam passando em busca de um amanhã.

Vejo a nuvem cinzenta, estranha, os cachorros uivando, assustados, vejo a lágrima escorrendo, abundante, dor de partida de um ente querido... Acho que a morte seqüestrou mais alguém!

Anoitece, o sol se esconde, as luzes se acendem e a lua, de repente, reclama toda a atenção para si. Um café reanima, acendo um cigarro, contado, racionado, e me vejo também na calçada a buscar alguma coisa perdida, pois lá se vão cinqüenta e poucos anos de vida e eu nem sei se ela foi bem vivida, ou se ela passou e eu não vi!

Da janela do meu quarto eu vejo muitas coisas. Vejo o casal de amantes, sorrateiros, audaciosos, protegidos pela lua, alcoviteira das mais famosas, cada um preso ao seu laço, não conseguem se desvencilhar, não conseguem se despedir.

Vejo a mulher solitária abraçada à sua saudade, televisão ligada, não importa em qual programa, é só para assustar o silêncio, é só para amansar o tempo, enquanto o sono não chega, alguns comprimidos e dormir.

Vejo o escritor delirando, a viajar em algum novo tema, tomara que seja um romance... Drama não! Já chegam os que existem por aqui. Quem sabe um belo poema que fale de pele morena, de aconchego, de coisas molhadas, que acabe em beijo na boca e de preferência com nenhuma roupa. De corpos nus é bem melhor!

Da janela do meu quarto eu percebo que a noite avança, alguém me pede uma dança e o som de uma música suave brota da janela ao lado, onde um piano, com muito capricho, descola um “blues”, quase um clássico. Olho e te reconheço, companheira de tantas noitadas, a quem eu chamo de anjo travesso. O teu nome é insônia insistente que faz tempo está sempre presente tentando me seduzir.

Da janela do meu quarto eu percebo a cidade em silêncio, vento frio, já é madrugada, daqui a pouco amanhece e pronto! Céu de chuva, mudança de tempo, logo mais acordar, bem mais tarde, pois o poeta precisa dormir.
NALDOVELHO
Enviado por NALDOVELHO em 23/05/2009
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